sábado, 27 de junho de 2009

JUIZES QUE HONRAM A TOGA E A PÁTRIA

Sentença em Ação Revisional
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
TRIGÉSIMA VARA CÍVEL CENTRAL

Processo 000.01.002683-5 (54)

ADEMAR ANTONIO ZANFOLIN ajuizou ação de revisão de contrato, cumulada com declaratória de nulidade de cláusulas abusivas, com pedido de liminar, pelo rito ordinário, contra CREDICARD S/A ADMINISTRADORA DE CARTÕES DE CRÉDITO, alegando ser titular de um cartão de crédito por essa emitido e para cujo pagamento das respectivas faturas, tem ele utilizado o chamado crédito rotativo. Porém, os encargos financeiros disso advindos são excessivos, o que o impediu de quitar seu débito para com a requerida, pois essa insiste em cobrar-lhe juros de um suposto financiamento. Asseverou que o principio da boa-fé deve ser utilizado como norma de conduta, no caso em tela, bem como as normas do Código de Defesa do Consumidor. Acrescentou que há cláusulas abusivas no bojo desse contrato. Que devem ser anuladas e que a requerida não pode cobrar a taxa de juros que pretende lhe impor. Por isso e citado diversas normas legais e extensas posições jurisprudenciais que entende aplicáveis ao caso e asseverando que a requerida ameaçou-o com a inclusão de seu nome em cadastro de maus pagadores, ajuizou, o requerente, a presente ação, com o fito de que seja declarada a nulidade das cláusulas abusivas inseridas nesse contrato e para poder pagar a maior, deduzindo, ainda, pedido de liminar para que seu nome não seja incluído no cadastro de maus pagadores. Juntou documentos (fls. 18 a 34).

O r. despacho de fl. 35 deferiu o pedido de tutela antecipada e determinou a citação da requerida.

Essa, em sua resposta, alegou que o requerente, ao aderir a seu sistema de cartões de crédito, ficou ciente de todos os seus direitos e obrigações, sendo certo que utilizou o crédito posto à sua disposição, mas deixou de efetuar os pagamentos devidos, mesmo sabedor das conseqüências que isso lhe acarretaria. Sabia, então, quais os encargos que iriam incidir sobre seu débito, bem como a requerida iria contrair financiamento para saldá-lo. Defendeu a perfeita validade da cláusula mandato inserida em contrato e que lhe permite assim proceder, aduzindo que ela está em conformidade com o sistema instituído pelo Código de Proteção ao Consumidor, vigente entre nós. Os juros e encargos por si cobrados também são legais, pois a norma do artigo 192, § 3º, da Constituição Federal, carece de regulamentação para entrar em vigor e porque as instituições financeiras podem cobrar taxas superiores a esse patamar, as quais a requerida repassa a seus consumidores que optam pelo financiamento de seus débitos; por isso, não há capitalização de juros nos encargos por ela cobrados. Insurgiu–se contra as pretendidas repetição de indébitos e inversão dos ônus da prova. Trouxe aos autos os documentos de fls. 80 a 139.

Replicou o requerente, a seguir, refutando as alegações da requerida, reiterando suas posições iniciais e trazendo aos autos novos documentos (fls. 155 a 172), dos quais foi dada ciência à requerida.

Instadas a especificar provas, ambas as partes pleitearam o julgamento antecipado da lide.

O despacho de fls. 177 determinou que a requerida cumprisse adequadamente a r. decisão de fls. 35 e ela, em resposta, trouxe aos autos os documentos de fls. 186 a 208, dos quais foi dada ciência ao requerente.
É o relatório.

DECIDO:

Conheço diretamente do pedido, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, pois a matéria litigiosa é exclusivamente de direito e porque os fatos encontram-se provados pelos documentos acostados aos autos, sendo desnecessária a produção de outras provas.

Trata-se de ação ordinária, por meio da qual o requerente pretende obter a revisão do cálculo de seu débito para com a requerida, com a anulação de cláusulas abusivas e recebendo de volta o dobro de eventuais valores pagos a maior.

De início insta reconhecer que a relação contratual entabulada entre as partes é efetivamente uma relação de consumo (fato que a própria requerida reconheceu em contestação), a sujeitar-se, portanto, ao disposto nas normas do Código de Defesa do Consumidor.

O requerente efetuou, por diversas oportunidades, o pagamento mínimo exigido pela requerida e, então, aduziu essa que contraiu empréstimos para cobrir seu saldo devedor, seguidamente renovado, sempre que no mês subseqüente esse não era integralmente quitado.

Por isso, asseverou que não cometeu anatocismo, ao apresentar à requerente a cobrança dos débitos no montante apontado e que tampouco dele cobrou juros excessivos ou capitalizados.

No entanto, essas suas assertivas não correspondem à realidade.

Sem embargo das respeitáveis decisões em sentido contrário, algumas das quais colacionadas aos autos e com as quais este Juízo costumava concordar, uma melhor reflexão sobre os termos da questão ora em debate fez com que essa anterior convicção fosse alterada, pelas razões a seguir elencadas.

A requerida não é uma instituição financeira, como ela própria fez questão de ressaltar na resposta que ofertou nos autos; assim, não lhe é dado cobrar juros superiores a 12% ao ano.

No sentido dessa conclusão, trago à colação a ementa dos seguintes julgados:

a) “Juros – Cartão de crédito- Administradora que não se identifica como entidade bancária ou financeira – Aplicabilidade da Lei de Usura- Decreto nº 22.626, de 1993 e não da Súmula nº 596 do STF - Não incidência de juros contratados e comissão de permanência sendo os devidos fins de mora (...)” (JTACSP (LEX) 175/167, do E. Primeiro Tribunal de Alçada Cível);

b) “Juros – Empréstimo concedido por empresa emitente de cartão de crédito – Anatocismo – Inadmissibilidade- Aplicabilidade do artigo 4º da Lei da Usura, também às instituições financeiras, com exclusão dos mútuos rural, comercial e industrial” (RT 728/265, do E. Primeiro Tribunal de Alçada Cível);

c) “(...) Apesar da divergência sobre a auto- aplicabilidade do § 3º, do artigo 192 da Constituição Federal, não sendo a administradora de cartão de crédito instituição financeira, está sujeita ao limite de juros imposto pelo Decreto 22.626/33 (Lei de Usura), pelo que não poderá cobrar juros superiores a 1% ao mês, vedada ainda a sua capitalização” (Apelação Cível nº 150715300, do E. Tribunal de Alçada do Paraná).

A alegação da requerida de que apenas repassou ao requerente os encargos de financiamentos assumido em seu nome para quitar seus débitos em atraso não merece a menor acolhida.

E isso porque ela não trouxe aos autos, no momento oportuno, nenhuma prova documental que comprovasse essa sua assertiva, sendo certo, ademais, que isso era ônus que lhe incumbia, nos termos do artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil.

E mesmo que assim não fosse, o certo é que a cláusula inserta no contrato firmado entre as partes e que permite à requerida assumir financiamentos em nome de seus consumidores, deve ser reconhecida como absolutamente nula e desprovida de qualquer efeito, porque abusiva e ofensiva ao sistema de proteção e de defesa ao consumidor vigente entre nós.

Nesse sentido, vale a transcrição, porque altamente ilustrativa da posição ora assumida por este Juízo, do seguinte trecho do v. acórdão proferido pelo E. Tribunal de Alçada do Paraná, nos autos da Apelação Cível nº 150715300: “A cláusula mandato autorizando a administradora a buscar financiamento bancário para saldar o débito em aberto e repassar os encargos ao associado, sem prévio conhecimento das condições desse financiamento, é nula por afrontar o disposto nos artigos 46 e 51, incisos VIII, X e XIII, do Código de Defesa do Consumidor”

E a cobrança de juros de forma cumulativa, caracterizando anatocismo, não lhe é permitida em nenhuma hipótese, pois essa prática apenas é possível quando houver expressa previsão legal autorizando-a, o que, entre nós, dá-se em contratos de mútuo rural, comercial e industrial (Decreto – lei 167/67 , 413/69 e Lei 6.840/80, respectivamente). Nesse sentido, apenas para ilustrar, cito o julgado inserto em RT 692/172, oriundo do E. STJ, que dispõe que a capitalização de juros é impossível, ainda que convencionada. Também se citaram, nesse julgado, outros, de igual teor e oriundos do mesmo Tribunal (Resp.1.285;2.293 e 13.829).

Já no julgado inserto em RT 728/265 (e oriundo do E. Primeiro Tribunal de Alçada Civil deste Estado), ficou consignado que a prática do anatocismo só é permitida expressamente em contratos de mútuo rural, comercial e industrial, porque prevista pelos respectivos diplomas legais ( Decretos- lei 167/67; 413/69 e Lei 6840/80), sendo vedada nos demais casos. Citaram –se, também, outros julgados daquela corte, no mesmo sentido ( JTACSP (LEX) 136/74 e 149/117).

Assim, na cobrança dos valores em atraso, a ela cabe apenas cobrar juros legais e correção monetária, afastada qualquer possibilidade de capitalização e de cobrança de comissão de permanência. E eventual multa moratória não poderá exceder o patamar de 2 %.

No sentido dessa conclusão, trago à colação os seguintes trechos de julgado oriundo do E. Primeiro Tribunal de Alçada Cível e publicado em JTACSP (LEX) 175/167: “Juros remuneratórios - Impossibilidade de incidência, por não se tratar de instituição bancária - Substituição pela correção monetária – (...) não se tratando de empréstimo bancário, não há que se falar em juros a não ser de mora”

Já o apego da requerida ao fato de que seus contratos foram reconhecidos como respeitadores das normas do Código de Defesa do Consumidor, pelo Ministério Público deste Estado, trata-se de matéria de todo irrelevante para o deslinde da controvérsia instaurada nestes autos, pois ela sequer cuidou de trazer aos autos cópia do contrato firmado com o requerente, ou mesmo dos contratos submetidos à apreciação do Ministério Público.

Ademais, ao Poder Judiciário incumbe apreciar eventuais ilegalidades existentes no bojo desses contratos, em respeito à norma insculpida em nossa vigente Magna carta, artigo 5º , inciso XXXV.

Transcreva-se, por oportuno e finalmente, os seguintes trechos do v. acórdão proferido pelo E. Tribunal de Alçada de Minas Gerais, nos autos da apelação nº 0301208-6, relatado pelo Juiz Wander Marotta, dadas as preciosas lições que encerra para a exegese do caso ora em debate:

“A evolução do pensamento jurídico no âmbito do acordo de vontades representou o deslocamento do centro de gravidade da teoria contratual da autonomia de vontade – que refletia a ideologia do Estado Liberal, cujo auge foi no século passado, vindo a nortear o Código Civil pátrio para o interesse social, em consonância com o Estado social, que se afirma no ordenamento brasileiro no Código de Defesa do Consumidor.

O conteúdo do contrato pode ser controlado pelo Poder Judiciário, sendo possível a modificação de suas cláusulas (artigo 6º, inciso 5º do CDC), quando requerida pelo consumidor, se evidente a desaprovação entre as obrigações das partes contratantes, bem com substituir as cláusulas abusivas pela norma legal (artigo 51 do CDC).

As cláusulas de declaração ficta, em que o silêncio do consumidor se assemelha a reconhecimento de dívida, não o impedem de discutir a dívida perante o Poder Judiciário, pois as contas da prestadora de serviços de cartão de crédito, que inseriu tal previsão no contrato de adesão, devem espelhar o verdadeiro débito, em vez de apresentar extratos eivados de equívocos, em que se cobra a mesma dívida por mais de uma vez, com juros, multas e encargos abusivos.

As multas de mora pelo inadimplemento de obrigações não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação (artigo 52, parágrafo primeiro, da Lei 8.078/90, CDC, em redação conferida pela Lei 9.298/1996).

Esta previsão alcança os contratos celebrados anteriormente à vigência da lei alteradora, posto que o momento de sua aplicação é o do pagamento do débito, ou o da ocorrência da mora. Se a prestação inadimplida vem a ser paga na vigência da nova disposição, deve o cálculo da dívida adequar- se aos ditames desta.

Os juros, remuneração pelo uso da coisa ou quantia pelo devedor, em virtude do tempo em que ficou privado o credor desta, não podem, no ordenamento jurídico pátrio, superar de 12% (doze por cento) ao ano.

A Súmula 596 do STF, já á época de sua edição, cristalizava entendimento equivocado. A atribuição ao Conselho Monetário Nacional, contida no artigo 4º , IX, da Lei 4.595/64, era para limitar as taxas de juros, e não liberá-las, devendo tal delimitação cingir-se à graduação até o limite legal (doze por cento ao ano), estatuído pelo Decreto 22.626/33.

Contudo, revogado está o artigo 4º, XI, da lei 4.595/64,face ao art. 25, I, ADCT, c/c art. 48, XIII, da Constituição Federal de 1998, por atribuir, em ação normativa, ao Conselho Monetário Nacional, competência assinalada pela Lei Maior ao Congresso nacional.

Inexistente a executoriedade compulsória do artigo 4º, IX, da Lei 4.595/64, norma especial, que restringia o campo de aplicação do Decreto 22.626/33, regulador das demais avenças, que não envolvessem instituições financeiras, passa a prevalecer, na íntegra, a norma geral do art. 1º deste Decreto, afastada a aberração de um efeito repristinatório.

A estipulação de juros excessivos fere o art. 82 do CCB. A ilicitude do objeto é conceito amplo, compreendendo tanto o que a lei proíbe quanto o que repugna à moral e aos bons costumes. É objeto de universal condenação a usura, a exploração do trabalho humano em favor da ganância, asfixiando o devedor, cujo esforço, voltado totalmente para a satisfação dos juros , lembra o castigo de Tântalo, por nunca se extinguir. Baldam os juros exorbitantes qualquer iniciativa honesta.

Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (art. 51, IV) confere proteção aquele que é atingido por cláusula abusiva, que coloca o consumidor em vantagem exagerada, como no caso dos juros, cláusula atípica de remuneração, quando excessivos.

Enquanto não resolvida judicialmente a questão sobre o valor do débito é vedado ao credor o envio do nome do devedor aos cadastros de proteção ao crédito”.

Assim, o certo é que a requerida cobrou valores indevidos do requerente, que se faz merecedor da repetição dos valores pagos a maior, procedendo- se a um expurgo dos juros cobrados acima do patamar de 12% ao ano e de sua cobrança de forma capitalizada.

Destarte e , em conclusão , impõe- se a procedência da ação para que seja revisto o cálculo do débito do requerente para com a requerida, com a atualização monetária dos valores em atraso, a contar da data de sua ocorrência, pela aplicação da variação do INPC, com acréscimo de juros de mora de 1% ao mês, cobrados de forma linear e não cumulativa e com incidência de multa no patamar máximo de 2%, reconhecida a nulidade de cláusulas contratuais que permitam à requerida agir de forma diferente, conforme extensivamente analisado no bojo desta decisão.

Anoto que eventuais valores cobrados a maior do requerente, por conta do indevido cálculo de seu débito que lhe foi imposto pela requerida, serão objeto de devolução em dobro , nos termos do artigo 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor.

A liquidação do julgado será feita por ocasião da execução da presente decisão, por meio da feitura de cálculos aritméticos.

Ante o exposto, julgo a ação PROCEDENTE e o faço para DECRETAR a revisão do cálculo do débito do requerente para com a requerida, com a atualização monetária dos valores em atraso, a contar da data de sua ocorrência, pela aplicação da variação do INPC e juros de mora de 1% ao mês, cobrados de forma linear e não cumulativa e com incidência de multa no patamar máximo de 2%, reconhecida a nulidade de cláusulas contratuais que permitam à requerida agir de forma diferente. Por conseguinte, torno definitiva a tutela antecipada parcial, deferida pelo r. despacho de fl. 35.

Por força do princípio da sucumbência, CONDENO a requerida no pagamento das custas e despesas processuais, atualizadas desde o desembolso, bem como em honorários de advogado, que arbitro, nos termos do § 4º , do artigo 20, do Código de Processo Civil, em R$ 1.500,00.

P.R.I.

São Paulo, 07 de Agosto de 2001.

MÁRCIO ANTÔNIO BOSCARO

JUIZ DE DIREITO

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